Mudança

Nos grandes momentos todos são heróis; tem-se sempre a ideia, embora vaga, de que se está representando e que o papel se deverá desempenhar com perfeição; de outro modo não aplaude o público.

31 de janeiro de 2011

Tudo o Que Você Devia Saber Sobre as Eleições Mas Não Sabe


Vem o post e o título a propósito daquilo que falhou nas últimas eleições. Versão TL;DR: não foi o Cartão de Cidadão, foi você que não se informou e foi o Estado que não o informou.

Dito isto, tendo estado envolvido de 2005 a 2008 em 5 processos eleitorais e tendo tido a oportunidade de conhecer uma parte do processo (que não todo), vale a pena explicar como se processam umas eleições do ponto de vista operacional. Talvez assim fique claro para o cidadão e alguns jornalistas e comentadores ignorantes (estou a olhar para si prof. Marcelo Rebelo de Sousa) onde é que o problema radica.
Vamos lá então…
No dia das eleições o eleitor desloca-se à sua mesa de voto, normalmente instalada numa junta de freguesia ou numa escola, identifica-se (mais sobre isto adiante), vota e vai à Igreja, vota e vai almoçar um cozido à portuguesa (o do Tico Tico em Lisboa é porreiro), ou então vota à tarde e vai fazer o passeio dos tristes: dantes era a Costa, Sesimbra, Cascais, Sintra, etc. hoje em dia é o centro comercial mais próximo. É depois disto que começa a parte operacional.
Fechada a mesa de voto, são contados os votos em cada uma das mesas. Todo este processo é organizado pelas autarquias e pelo Ministério da Administração Interna, através da Direcção Geral da Administração Interna, em particular a Direcção de Serviços de Apoio ao Recenseamento e Processo Eleitoral(antigo STAPE, Secretariado Técnico dos Assuntos para o Processo Eleitoral).
Os votos são então levados para o Governo Civil mais próximo, para que os resultados sejam compilados e comunicados eletronicamente ao sistema informático de divulgação de resultados, suportado pelo Ministério da Justiçanomeadamente pelo Instituto das Tecnologias de Informação na Justiça. É neste passo que às vezes há algumas situações caricatas, nomeadamente com algumas pessoas das juntas de freguesia que vão festejar a vitória mais cedo a beber copos num bar qualquer e depois tem de ir lá a GNR buscá-los para entregarem os ditos votos no Governo Civil.
Tendo em conta o que aconteceu nas eleições autárquicas de 2005 e nestas eleições presidenciais, convirá esclarecer algumas coisas:
1) os resultados no dia das eleições são resultados provisórios, sendo os resultados finais contados e confirmados mais tarde pelo Tribunal Constitucional(amanhã é a contagem para os resultados finais destas últimas eleições);
2) o sistema que recebe e compila os resultados é completamente independente do sistema que divulga os resultados; em 2005 a falha deste último durante cerca de 45 minutos nunca pôs em causa o primeiro que é o verdadeiramente importante;
3) estes dois sistemas são independentes do site do MAI/DGAI/DSARP/STAPE, do site de informações sobre o recenseamento e do site da Comissão Nacional de Eleições(CNE). Todos estes sites também são independentes uns dos outros e não têm nada a ver com o processo eleitoral. Muita boa gente acede a um deles, não consegue aceder, e “ai jesus” que as eleições não estão a funcionar. O que é uma burrice decorrente de não se informarem, de não serem informados, e de os Portugueses terem um vício de procurar coisas que correm mal e acharem culpados. Nada como um bocadinho de sangue para animar um dia que, no geral, é uma chatice. Foi o site site de informações sobre o recenseamento que teve problemas durante estas eleições (mais adiante);
4)  o que faz a CNE? Basicamente nada, em termos operacionais. É um orgão fiscalizador que faz parte da Assembleia da República. Quando as coisas correm bem ninguém lhes liga; quando correm mal são os primeiros a falar na televisão a dizer que não têm nada a ver com o assunto;
E pronto a coisa está feita. Ou então não…
Vamos voltar atrás: o eleitor identifica-se como? À partida deveria bastar o Bilhete de Identidade, hoje em dia o Cartão de Cidadão (note-se o “de” e não “do” ou “da”; politiquices…). O BI/CC (e não CU como dá jeito a alguma imprensa publicar; em Portugal também somos todos uns cómicos e folgazões que gostam da rambóia) tem um número único, uma assinatura e uma foto. Tá feito, identifica o artista que quer votar.
O problema é que, devido a questões históricas e operacionais, o BI (não o CC) não é suficiente. Não é suficiente porque não tem (não tinha) a morada/residência do eleitor. Não se pode (podia) portanto identificar o eleitor pelo BI: não dava para saber se ele (ela pronto) podia votar naquela freguesia e mesa de voto. Daí que se tenha inventado o belo do número de eleitor e o belo do cartão de eleitor (altamente falsificável diga-se de passagem, mas isso agora não interessa nada).
Então e agora, mesmo com o número de eleitor, como é que a mesa sabe que aquele eleitor, com aquele número de eleitor, pode votar naquela mesa? Entram em cena outra invenção “brilhante”, os cadernos eleitorais, resmas de papel impressas com as listas de eleitores afectos a cada freguesia/mesa. E aqui começa o problema: impressas em papel.
Primeiro problema: não dá para um eleitor votar fora da mesa de voto onde está registado. Não dá para mandar as lista nacional de cadernos eleitorais para todas as mesas de voto, cada uma recebe a sua. O eleitor, se está de férias no Algarve, ou vai até Fornos de Algodres para votar ou então chapéu. Se mudou de residência (outro problema), não pode votar onde agora mora.
Segundo problema: o artolas do eleitor, se mudou de residência, devia comunicar à nova junta de freguesia que agora é morador e informar o seu número de eleitor. Pois é, muita gente não faz isto. Eu moro há dez anos na Rua da Penha de França e ainda vou votar a Carnide. E a Cristina ainda vai votar a Benfica, umas vezes à Escola Pedro de Santarém outras à Escola Quinta de Marrocos (mais um problema). Somos portanto uns artolas.
Terceiro problema: então mas a junta de freguesia antiga não devia dar baixa do eleitor? Devia. Só que não sabe porque o eleitor se está basicamente a cagar e não comunica a baixa. Para além disso a junta de freguesia também se está a cagar porque quanto mais eleitores tiver registados mais subsídios recebe. Ah pois é.
Quarto problema: se um eleitor comunica à junta de freguesia onde agora mora que é eleitor mas se esquece de comunicar à sua junta de freguesia original que se foi embora, há agora um eleitor que vale por dois. No limite pode ir votar às duas secções de voto. Tão a ver porque é que existem mais eleitores do que a população portuguesa?
Quinto problema: o eleitor nunca sabe onde vai votar. Umas vezes é na escola, outras vezes na junta de freguesia, outras vezes no quartel dos bombeiros. Antes de ir votar, o eleitor deveria consultar os editais (deves…) para saber em que local vota. Na verdade não o faz. Vai directo ao sítio onde votou da última vez. Depois às vezes lixa-se porque tem de ir para a fila noutro sítio. E chateia-se porque o País é uma vergonha e é do terceiro mundo.
Estão aqui a ver a cena? Desde sempre que é necessário consultar os cadernos e os editais. De antemão. Só que ninguém o faz: deixa tudo para a última e consulta lá no estaminé onde vota. O processo e os problemas que aconteceram nestas eleições já existiam antes, só que em menor escala.
Os eleitores, como de costume, deixaram tudo para a última. Não consultaram os cadernos eleitorais, em papel, por telefone, por SMS ou online. É certo que, pelos vistos, o Estado também não os informou (problemas de orçamento?), como fez em eleições anteriores. No dia, da mesma forma que anteriormente se acotovelavam eleitores no dia das eleições para ver os cadernos e em que secção votavam, acotovelaram-se desta vez nos SMS, no telefone e no site. Conclusão: o site foi à vida.
É a vida… Os eleitores não sabem, não querem saber, o Estado não explica, ah e tal, e eu gosto de trabalhar sim senhor, mas não os vejo a fazer nada.
Estes problemas todos, resolvem-se? Resolvem. Com o Cartão de Cidadão e com a informatização dos cadernos eleitorais.
É que o Cartão de Cidadão identifica de forma única o eleitor e contém a morada actual do mesmo. E quando há uma mudança (nas Finanças, na Segurança Social, etc) ficam logo todos os serviços a saber da nova morada. Nomeadamente o MAI, para alterar o local de voto respectivo. Acresce que, desta forma, pode o eleitor passar a votar em qualquer mesa de voto. O CC é usado para verificar a identidade e a residência e, depois de feito o voto (em papel, que isso do voto electrónico é uma parolice) o leitor votou e já não vota em mais lado nenhum. Só que há malta que não gosta. Há eleitores que gostam de ir votar ao cú de Judas. Há eleitores que têm uma ou mais moradas e não querem que lhas mudem. Há autarquias que lhes dá jeito manter o número de eleitores não se vão perder os subsídios. E há partidos que também não lhes fica em caminho, porque podia acontecer deixar de ter a mesma base eleitoral inflacionada que permite ganhar mais uns vereadores e tal.
Estes problemas estão resolvidos: o Cartão de Cidadão funciona perfeitamente e os cadernos eleitorais informatizados também. Qual é o problema então? O problema é que numa fase transitória, há quem ainda não tenha mudado para o CC e continue a ter BI e cartão de eleitor. Há quem se recuse a mudar. Portanto continua a ser necessário mapear BIs em cartões de eleitor e vice versa. Portanto continua a ser necessário, como dantes, que o eleitor se informe do local onde deve votar. Seja porque tem o BI e o cartão de eleitor ou seja porque tem o CC e foi feita a mudança de residência automaticamente (“tá mal, acabaram com a burocracia e tal, e eu agora já não posso ter teorias da conspiração sobre falcatruas nas mesas de voto com eleitores mortos e o camandro”). É preciso consultar um site, fazer um telefonema ou mandar um SMS. Mas isso é muito chato. Vai-se no dia e depois logo se vê.
Conclusão: o problema das eleições deveu-se ao eleitor e ao Estado. O eleitor não se informa. Julga que só tem direitos. Deveres népia. E o Estado também não informa. Custa dinheiro e não dá jeito. A componente tecnológica foi obviamente uma parte do problema e que podia ter sido precavida. Mas foi a parte menor do problema. A parte principal foram as deficiências no exercicio da cidadania e as deficiências de comunicação do poder estatal. Se os processos têm problemas e não são alterados, não há muito que a tecnologia possa fazer. Basicamente apenas vai replicar processos deficientes e multiplicar por 10x as suas consequências.

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